quinta-feira, setembro 04, 2014

Diário de um dia vivido a sul entre gaivotas, conchinhas, jacuzzis, palavras de Sophia e outras mordomias (com a visão, nos entretantos, de um carapau e de um casamento)


Pronto. No post abaixo já cumpri o meu serviço cívico: deixei seis medidas fresquinhas, vivinhas da costa, daquelas de quem os detractores de António Costa não poderão dizer que são mais do mesmo, que pouco o separa do Tozé ou que anda a desencantar medidas velhas e relhas dos tempos dos Estados Gerais. Destas minhas ideias, que Costa pode fazer suas, não poderão eles dizer o mesmo. E, mal estejam entretidos a comentar estas, atirarei com mais umas quantas.

Bem, mas isso é a seguir a este post. Aqui, agora, a conversa é outra. Aqui vou dar notícia dos Mares do Sul.



La mer





Dia de sol. O calor não tem sido excessivo. Quando estávamos a chegar à praia vinha um casal inglês de idade e o senhor trazia um carapau na mão. Depois, junto a umas giestas, parou e começou a chamar um gato que por ali tenho visto. O gato apareceu e o senhor, todo contente, queria entusiasmá-lo, queria que ele saltasse e lhe viesse buscar o carapau à mão; mas o gato ficou intrigado, sem reacção. O senhor ficou nitidamente desapontado enquanto o gato, atónito, olhava para o carapau. Depois a senhora disse para o marido atirar o carapau. O senhor assim fez mas o gato não se mexeu, continuava a olhar intrigado para o senhor e para a senhora. Ou não percebia que cena era aquela ou não percebia inglês.




Quando demos mais uns passos percebemos como é que aquele carapau tinha aparecido na mão do senhor. A praia estava cheia, cheia de gaivotas. Algum barco, ao levar peixe para a lota ou para o mercado, deve ter deixado cair alguns peixes.

Fizemos a nossa caminhada matinal, cinco quilómetros. Encontrámos na orla de água mais um ou outro carapau.

O sol foi abrindo, as águas brilhando à luz franca do sul. Entretanto, as gaivotas já tinham sossegado, pareciam pequenos cisnes tranquilos, indiferentes aos barcos de recreio que iam deslizando rente a elas.




A água estava fria. Não nadei no mar mas, ao voltarmos ao hotel, fomos para a piscina interior, aquecida, e aí nadei e estive debaixo das cascatas e dos chuveiros de massagens e, a seguir, estive no jacuzzi fervente e borbulhante. Por pouco não adormeci, tal a leveza no corpo.

A seguir fomos ao supermercado. Nem pensar irmos enfiar-nos num restaurante a meio do dia. Então, quando chegámos ao quarto, fomos para a varanda e fizemos sandes. A minha foi em pão escuro com sementes. O meu marido comeu duas em carcaça de pão escuro. Pusémos queijo de barrar Philadelphia de salmão, enchemo-lo depois com salmão fumado, salada de alface, cenoura ralada e milho (daqueles sacos de salada pré-lavada) e tomate. Bebemos sumo fresco 100% feito a partir de frutos. E comemos uma peça de fruta. Depois comemos um quadrado de chocolate preto com frutos vermelhos. Sentados na varanda, a petiscarmos, a conversarmos e a vermos o mar, sentimo-nos mesmo bem, como se aquilo fosse do melhor que há.

Depois, deitámo-nos para descansarmos e lermos. Estou a gostar muito do livro do Geoff Dyer pelo que não foi por ele, foi mesmo pela moleza: adormeci.

Perto das cinco da tarde acordei e fomos de novo para a praia. Voltámos a caminhar, desta vez um pouco menos de três quilómetros. Tantas conchinhas, tantas, tão lindas.




Uma irresistível tentação. O meu marido não consegue perceber e eu também não lhe consigo explicar. Para que as quero? Não sei porque, mal saio da praia, já não sei bem que destino lhes dar. Estas talvez as leve para o meu gabinete, tenho já umas quantas dentro dum armário alto em que quase toda a gente deve pensar que tenho carradas de dossiers importantes mas em que quase só tenho coisas assim.

Quando íamos a sair da praia, decorria no areal um casamento.




Um casal inglês, por volta dos sessentas, ela vestida de branco, ambos comovidos e no meio de um grupo de ruidosos convidados que aplaudiam os votos que eles formulavam, num entusiasmo alegre e festivo.

Fomos, então, para a beira da piscina externa do hotel e aí, finalmente, lá consegui voltar a ler o meu livro, agora nas suas andanças pelo Camboja com a sua Circle, ex-Miss Camboja.

Quando falei ao telefone com a minha filha e ela me disse que o tempo no fim de semana ia estar de chuva e já estava deprimida com isso, lembrei-a de que, nem a brincar, devia dizer tal coisa e falei-lhe nas pessoas sobre quem tinha estado a ler, pobres, desgraçadas, que vivem dentro de água, na lama, miúdos sem pernas, e que, apesar disso, estavam sempre a sorrir. Ela disse-me que tinha sido apenas uma forma de expressão mas eu respondi-lhe que mesmo assim.

Depois voltámos à piscina interior, já estava a escurecer e já tinha as luzes dentro de água acesas. A água absolutamente negra com uns focos que ora eram azuis ora lilás. Que bom nadar assim. Depois novo jacuzzi. Tentei de novo a sauna ou o banho turco mas não sou capaz. O segundo tem uma temperatura entre os 40 e os 50º e a sauna entre os 60 e os 80º. Juro que não percebo como é que há gente que consegue respirar naqueles fornos. Eu nem consigo lá entrar.

Depois viemos ao quarto tomar banho e mudar de roupa e fomos jantar.

Um dia regalado. Dir-me-ão que é para quem pode e é verdade. E eu posso. E apesar de trabalhar bem mais de metade do ano para impostos, o que sobra ainda vai dando para estes pequenos luxos. Tomara que muitos mais também pudessem, tanto mais que, dessa forma, mais depressa e de forma mais sustentada se ajudaria a economia a reanimar, e, só com uma economia forte, o desenvolvimento poderá ter lugar.

Amanhã a ver se me mexo um pouco mais e vou até ao centro ver se estão ainda lá estão aquelas bancas com colares, tudo a 3 euros. Outra perdição.

Gosto tanto de passear em Lagos, andar rente à água, andar pelas ruas pedonais, ver o mercado.

Leitor, a quem muito agradeço, enviou-me um excerto que me deixou encantada e eu, enlevada pela ideia, transcrevo o texto todo. Refere-se a como Sophia retrata a forma como ensinou a sua empregada a ir a pé da casa de férias até ao mercado:



Vais pela estrada que é de terra amarela e quase sem nenhuma sombra. As cigarras cantarão o silêncio de bronze. À tua direita irá primeiro um muro caiado que desenha a curva da estrada. Depois encontrarás as figueiras transparentes e enroladas; mas os seus ramos não dão nenhuma sombra. E assim irás sempre em frente com a pesada mão do Sol pousada nos teus ombros, mas conduzida por uma luz levíssima e fresca. Até chegares às muralhas antigas da cidade que estão em ruínas. Passa debaixo da porta e vai pelas pequenas ruas estreitas, direitas e brancas, até encontrares em frente do mar uma grande praça quadrada e clara que tem no centro uma estátua. Segue entre as casas e o mar até ao mercado que fica depois de uma alta parede amarela. Aí deves parar e olhar um instante para o largo pois ali o visível se vê até ao fim. E olha bem o branco, o puro branco, o branco de cal onde a luz cai a direito. Também ali entre a cidade e a água não encontrarás nenhuma sombra; abriga-te por isso no sopro corrido e fresco do mar. Entra no mercado e vira à tua direita e ao terceiro homem que encontrares em frente da terceira banca de pedra compra peixes. Os peixes são azuis e brilhantes e escuros com malhas pretas. E o homem há-de pedir-te que vejas como as suas guelras são encarnadas e que vejas bem como o seu azul é profundo e como eles cheiram realmente, realmente a mar. Depois verás peixes pretos e vermelhos e cor-de-rosa e cor de prata. E verás os polvos cor de pedra e as conchas, os búzios e as espadas do mar. E a luz se tornará líquida e o próprio ar salgado e um caranguejo irá correndo sobre uma mesa de pedra. À tua direita então verás uma escada: sobe depressa mas sem tocar no velho cego que desce devagar. E ao cimo da escada está uma mulher de meia idade com rugas finas e leves na cara. E tem ao pescoço uma medalha de ouro com o retrato do filho que morreu. Pede-lhe que te dê um ramo de louro, um ramo de orégãos, um ramo de salsa e um ramo de hortelã. Mais adiante compra figos pretos: mas os figos não são pretos mas azuis e dentro são cor-de-rosa e de todos eles corre uma lágrima de mel. Depois vai de vendedor em vendedor e enche os teus cestos de frutos, hortaliças, ervas, orvalhos e limões. Depois desce a escada, sai do mercado e caminha para o centro da cidade. Agora aí verás que ao longo das paredes nasceu uma serpente de sombra azul, estreita e comprida. Caminha rente às casas. Num dos teus ombros pousará a mão da sombra, no outro a mão do Sol. Caminha até encontrares uma igreja alta e quadrada.Lá dentro ficarás ajoelhada na penumbra olhando o branco das paredes e o brilho azul dos azulejos. Aí escutarás o silêncio. Aí se levantará como um canto o teu amor pelas coisas visíveis que é a tua oração em frente do grande Deus invisível.
Sophia de Mello Breyner Andresen




Belas, belas palavras as de Sophia tão cheias de luz e de sul. São mesmo assim os caminhos pelas serpentes de sombra de Lagos, pelos muros, pelo sol.


E assim vão decorrendo estes meus tranquilos dias vividos a sul.


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A música é de Claude Debussy's "La Mer", "Jeux de vagues


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Tinha ainda um outro assunto para desenvolver mas é tema barbudo, cabeludo mesmo, mete mulheres enganadas, maridos engatatões, palermas encartados, e isso não é coisa que eu consiga despachar em duas penadas pelo que, passando das duas da manhã, já não poderei deitar mãos à obra. Talvez fique para amanhã.


Relembro: para curtirem as ideias novas que daqui ofereço a António Costa - para ver se ele consegue derrotar as cassandras e as velhas do restelo que tentam desvalorizá-lo, dizendo que não tem ideias inovadoras - é só descerem até ao post seguinte.


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Desejo-vos,meus Caros Leitores, uma bela quinta-feira. 

Be happy, ok?


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1 comentário:

Anónimo disse...

Mais um post fantástico! Belas fotografias de Lagos! O mar, o céu, as gaivotas (lindas), a falésia...
O texto de Sophia...
Obrigada por partilhar.
Desfrute ao máximo, tudo o que puder.

Conceição Teixeira